Por Carolina de Almeida,
Edilan Martins e
Raphael Barroso
No filme "O Homem Com a Câmera", de 1929, as filmagens têm como objetivo a representação da sociedade soviética apontando suas principais características. Na imagem, a cidade de São Petersburgo, vista do alto, demonstra a agitação das suas principais avenidas.
Na sua construção original, o cinema foi entendido como o lugar da “sétima arte”. Isso significa dizer que o esplendor de beleza, vivido apenas em obras de representação imagética, como as pinturas e/ou fotografias, agora podia ser encontrado na sua relação com os impactos da “imagem em movimento” e logo em seguida, juntamente, com a introdução do áudio, causados nas emoções das pessoas. É preciso, antes de tudo, lembrar que a representação da realidade ou mesmo de como ela era concebida, por meio de um recurso imagético (fotografia), já era por si só uma experiência de mudança no padrão estético e de compreensão do uso e significado da arte.
Não seria arriscado talvez dizer que o “problema” fica pior quando a tecnologia usada na criação das fotografias, a câmera, se torna acessível para a grande maioria da população. O significado da fotografia passa a ser o de registro histórico, as novas correntes artísticas começam a se preocupar com outras “realidades”, novas abordagens, como o impressionismo, o dadaísmo e o surrealismo, e a fotografia dentro de um “jogo artístico” começa, em certo sentido, a se perder. Como o próprio lema da câmera Kodak dizia, em fins do século XIX: “aperte o botão e nós fazemos o resto”. Nessa mesma linha de raciocínio, o cinema, pouco mais posteriormente, já no decorrer das primeiras décadas do século XX, torna-se um objeto – um meio – de “crítica redentora”, ou seja, o lugar de exclusivismo da arte, local de contemplação e, muitas vezes, próprio de uma arte entendida pelo seu teor de respeito, preservação e sacralização, é agora uma efemeridade, mais um “produto” dentro de uma lógica de reprodução ou somente de um registro histórico.
Essa perspectiva foi inaugurada por Walter Benjamin em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935-1936). Benjamin era um judeu alemão que se ligava ao partido socialista desde a sua juventude. Em 1936, fugiu da perseguição nazista para a França, onde veio a falecer, já em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Benjamin era um amante não só do cinema, mas da arte de maneira geral, uma “expressão viva da capacidade do ser humano de representar e sentir”. Devido à sua tendência de esquerda, Benjamin acreditava que a arte tinha como uma de suas finalidades, a promulgação, ou possiblidade, de uma consciência revolucionária, assim como ocorreu na Rússia em 1917. Por isso, para se melhor entender a crítica de Benjamin ao cinema no campo da reprodução técnica, é preciso antes entender essa sua tendência política e ideológica de esquerda, também denominada de marxista, que englobava o pensamento do autor.
De maneira geral, a percepção marxista entende que toda a história da humanidade é centrada na sua produção de subsistência, ou seja, nos modos de produção a se chegar a relações adequadas de alimentação, de prosperidade social e individual, além da sobrevivência da espécie. Essa corrente de pensamento também pode ser denominada de “materialismo histórico”. Porém, a produção dos meios de subsistência nunca é de forma igualitária, o que faz com que aqueles que não detém os meios básicos para a produção consequentemente lutem com os que tem mais do que o necessário (luta de classes). O pensamento marxista influencia diversas correntes do pensamento, como a sociologia (Max Webber), a filosofia, a pedagogia (Lev Vygotsky) e a física (Teoria do Caos – Edward Lorenz, 1960). Segundo Miriam Hansen (1987), é na noção de luta de classes que Benjamin vai apontar sua principal crítica à teoria cinematográfica: o “cinema de atração”. O cinema de atração é o poder mágico e ilusionista cinematográfico que se orienta pelas modalidades de fascinação predominantes, das manipulações cinéticas e temporais e da tendência francamente exibicionista dos chamados “filmes comerciais”. Ou seja, o cinema se torna uma indústria, perde seu lugar inicial, sua singularidade, autoridade e autenticidade, e vai para o campo da multiplicação. Sendo depois um produto também de dominação, como foi usado pelos regimes totalitários, como o nazismo, o fascismo e o stalinismo. Pode-se supor que a crítica de Benjamin ao “cinema de atração” não está ligada exclusivamente ao modo de fazer cinema, que se altera, mas ao próprio modo de produção capitalista que cada vez se torna mais universal e preponderante na sociedade. Benjamin escreve na década de 1930, nesse momento ocorre uma mudança nos hábitos de consumo da sociedade que pressupõe mudanças também nos modos de pensar e agir das pessoas.
De certa forma, o “lugar” da arte e do cinema também se altera para se adequar às novas exigências. Diversas alterações no âmbito social ocorrem, há uma efervescência cultural, um desenvolvimento do capitalismo industrial em larga escala, da vida urbana e das novas tecnologias, etc. Para Benjamin, o cinema acaba entrando na linha de montagem fordista: “o cinema reproduz no campo da recepção aquilo que a esteira rolante impõe aos seres humanos no campo da produção”. Talvez não seja um erro dizer que a própria influência marxista de Benjamin fazia com que o mesmo referisse ao cinema soviético como uma alternativa para ir contra o “cinema de atração” e puramente comercial. Como exemplo, podemos citar os filmes Encouraçado Potekin, Outubro e Ivan o Terrível, de Sergei Eisenstein, bem como O Homem com a Câmera, de Dziga Vertov. O cinema e a psicanálise são rigorosamente contemporâneos, pois, no mesmo ano em que ocorre a publicação dos estudos sobre histeria (1895), os irmãos Lumière fazem as primeiras projeções públicas em Paris. Não só isso, mas ao mesmo tempo em que as apresentações dos irmãos Lumière são feitas, Freud está escrevendo sua análise do emblemático sonho da injeção de Irma. As aproximações entre cinema e psicanálise não param por aí.
Assim como a obra freudiana, os textos de Benjamin denotam uma ambiguidade em relação às conquistas da modernidade. O tempo da modernidade transcorre em alta velocidade, erguendo atrás de si um acúmulo de ruínas e fragmentos órfãos de experiência. Imerso num tempo descontínuo, prenhe de um excesso de estímulos, o homem moderno ocupa-se em defender-se e abandona rastros desencarnados, isto é, desprovidos de história. O transeunte das cidades modernas circula por espaços fantasmagóricos nos quais os objetos, a arquitetura, as moradias não tocam um tempo remoto, mas são eternamente novos. Ele está deslumbrado diante das últimas novidades e fica ocupado em responder às demandas do capital no mesmo ritmo das máquinas, abdicando da possibilidade de ter experiências. Diante deste panorama, Benjamin vê o cinema de forma paradoxal: ao mesmo tempo em que este ressuscita imagens relegadas ao esquecimento, reitera um modo de percepção incapaz de restaurar um olhar que convoque à experiência. Assistir a um filme é submeter-se aos choques que as diferentes cenas impõem ao espectador, exigindo deste uma disposição distraída para que seja capaz de acompanhar a intermitência entre os elos do enredo.
Na psicanálise freudiana, a desconfiança diante dos avanços do processo civilizatório na modernidade alcançou planos antes insuspeitos. Freud argumenta que, em nome do processo civilizatório, o homem foi obrigado a renunciar a grande parte de suas pulsões sexuais e agressivas. Tal renúncia ocorreu por meio de recalque, o qual não é inócuo para a saúde psíquica dos indivíduos. A severidade da censura internalizada pelos sujeitos sob a forma de superego resulta em mal-estar permanente. O homem se vê compelido a alcançar todas as ambições da ética civilizatória de amor ao próximo, ordem, limpeza, amor sexual comedido e restrição à agressividade, entretanto, os vestígios dos impulsos insatisfeitos relegados ao porão são impertinentes, fazendo também suas exigências. O homem civilizado é refém deste conflito entre exigências do superego e reivindicações do id.
Assim como Walter Benjamin trata dos escombros da história condenados ao esquecimento, Freud traz à luz os aspectos desdenhados ou até repudiados pelo processo civilizatório: sexualidade infantil, sonhos, desejos de morte e incesto, atos falhos, chistes. Ao abordar esses temas, concede-lhes novo estatuto, tomando, como Benjamin, a tarefa de “escovar a história a contrapelo” para redimir os restos considerados absurdos ou simplesmente banidos do discurso corrente. O cinema é pensado por Benjamin como uma das formas de trazer para a consciência elementos que, sem ele, permaneceriam esquecidos ou desconhecidos. A referência a temas da psicanálise, como os sonhos, não é apenas indireta no texto de Benjamin. Benjamin argumenta que, antes do advento da psicanálise, um lapso cometido ao longo de uma conversa dificilmente era notado.
Com a análise de atos falhos e chistes, este fato alterou-se, dando margem a uma investigação por caminhos antes inexplorados. A amplitude da percepção óptica e acústica no cinema teve como consequência um aprofundamento semelhante da percepção. Sua revolução localiza-se nos grandes planos, no realce de detalhes antes imperceptíveis, na exploração de lugares banais com uma direção surpreendentemente objetiva, aumentando a extensão de nossa compreensão sobre as imposições que regem a vida e ampliando o alcance do campo de ação humano.
Em "Triunfo da Vontade", de 1935, Hitler foi constantemente fotografado de baixo para cima e mostrado contra o céu para que sua imagem parecesse mais alta e mais heróica. Da mesma forma, era sempre caracterizado com o uniforme militar, o equivalente moderno de uma armadura medieval, o que era uma das principais críticas de Benjamin: o cinema como propaganda e como modo de dominação.
Para além disso, o que o cinema perde ao entrar no campo da reprodutibilidade técnica, de acordo com Benjamin, é a sua aura. A aura atribui valor a determinado objeto (obra de arte) por sua originalidade, raridade, que merece ser cultuada, porque este representa um contexto histórico, cultural, social e, sobretudo, a expressão artística de seu autor. Diante disso, percebemos que a cópia não pode ser valorizada da mesma forma, pois ela é posterior à obra de arte original e o que motiva essa reprodução são fatores que se desenvolveram por meio de um objeto original. Entretanto, não podemos deixar de dizer que os paradigmas transcendentais de arte foram elaborados por um grupo de pessoas que atuam no meio artístico, reconhecidas pela sociedade exterior a ele, como aptas para fazerem tais definições. Ao entrarmos em contato com as teorias de Benjamin, percebemos que estes modelos são historicamente construídos e questionados. É relevante lembrar que vários artistas questionaram estes modelos, como os impressionistas e os surrealistas, que primavam exatamente pela ausência de paradigmas (técnica).Diante disso, temos que levar em consideração a contemporaneidade, que traz consigo o desenvolvimento da comunicação e por consequência o acesso a informação, que motiva uma discussão sobre a democratização da arte e um questionamento relacionado ao consumo da mesma, atrelado à manipulação social. Sobre essas questões, podemos citar vários exemplos, inclusive o cinema, que nasce a partir da fotografia, mas nosso objetivo nesse momento é propor uma expansão desses conceitos que pairam em torno da aura cunhada por Benjamin, ligada ao cinema, para os mais variados seguimentos artísticos, como: pintura, escultura, música, dança... Por que não trazê-los para o nosso cotidiano?
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